A Tether, emissora da USDT — a maior stablecoin mundial — está a acumular ouro físico a um ritmo sem precedentes.
Segundo o relatório do terceiro trimestre de 2025 da Tether, as reservas de ouro aumentaram para 12,9 mil milhões de dólares, face aos 5,3 mil milhões de dólares registados no final de 2024. Em apenas nove meses, a posição líquida em ouro da Tether cresceu mais de 7,6 mil milhões de dólares. Analistas de mercado destacam que, ao longo do último ano, a Tether adicionou mais de uma tonelada de ouro por semana às suas reservas, ultrapassando o ritmo de acumulação da maioria dos bancos centrais.
Além disso, a Tether iniciou a aquisição de participações de controlo em minas de ouro e a contratação de operadores globais de metais preciosos de topo. Estas decisões estratégicas apontam para a construção de uma espécie de “banco central sem fronteiras”, alicerçado em obrigações do Tesouro dos EUA para geração de lucros e sustentado por ouro e Bitcoin como ativos fundamentais. Contudo, por detrás deste império comercial aparentemente ideal, será este modelo realmente sustentável?
O desempenho financeiro da Tether em 2025 tem sido excecional. Nos primeiros nove meses, os lucros líquidos ultrapassaram os 10 mil milhões de dólares, elevando a valorização da Tether para 500 mil milhões de dólares, em linha com a OPENAI.
Esta geração de lucros de dez dígitos revela a “alquimia” da Tether, assente essencialmente em duas fontes:
Apesar de a Tether não apresentar uma divisão exata dos lucros, é possível identificar os principais fatores.
Os rendimentos das obrigações do Tesouro dos EUA deverão ascender a cerca de 4 mil milhões de dólares anuais, considerando uma rentabilidade de 4%.
O ouro teve um impacto crucial. No início de 2025, o ouro negociava-se a aproximadamente 2 624 dólares por onça, tendo subido para 3 859 dólares a 30 de setembro — uma valorização de 47%. Com base nas reservas de ouro da Tether no final de 2024 de 5,3 mil milhões de dólares, estas posições históricas geraram cerca de 2,5 mil milhões de dólares em ganhos não realizados. Incluindo as novas aquisições de ouro durante 2025, o lucro anual da Tether incorpora 3–4 mil milhões de dólares provenientes da valorização do ouro. Os ganhos não realizados em Bitcoin são estimados em cerca de 2 mil milhões de dólares.
Assim, o ouro tornou-se um elemento central no modelo de receita da Tether. A empresa não se limita a utilizar o ouro como fonte de retorno; está a replicar estratégias de fundos soberanos, pretendendo controlar toda a cadeia de valor do ouro — da extração à comercialização.
Em junho de 2025, a Tether Investments anunciou uma participação acionista estratégica de 37,8% na Elemental Altus Royalties Corp., empresa canadiana cotada em bolsa dedicada a royalties de ouro, com direito de aumento da participação para 51,8% — assegurando o controlo maioritário. Este modelo de royalties permite à Tether garantir uma quota da produção de ouro a longo prazo sem o risco operacional da extração, assegurando disponibilidade para as suas reservas.
Em novembro, a Tether recrutou dois operadores internacionais de metais preciosos provenientes do HSBC. Vincent Domien, um dos profissionais contratados, foi Global Head of Metal Trading no HSBC e integra o conselho da London Bullion Market Association (LBMA).
Adicionalmente, a Tether Gold (XAUT) — produto autónomo tokenizado de ouro — conta já com uma capitalização de mercado superior a 2,1 mil milhões de dólares. Em parceria com a Antalpha de Singapura, a Tether pretende captar pelo menos 200 milhões de dólares para a iniciativa Digital Asset Treasury (DAT). O objetivo é acumular tokens XAUT e criar uma “plataforma institucional de empréstimos colateralizados em ouro”.
Com estas decisões estratégicas, a Tether desenhou um modelo de negócio de robustez excecional:
Captação de dólares: Através da emissão de USDT, a Tether atrai quase 180 mil milhões de dólares em capital internacional.
Investimento em obrigações do Tesouro dos EUA: Aloca a maioria destes fundos em obrigações do Tesouro dos EUA altamente líquidas e seguras.
Rendimentos de juros: Num contexto de taxas elevadas da Fed, a Tether obtém milhares de milhões de dólares anuais em juros “sem risco”.
Aquisição de ouro: Parte dos lucros é reinvestida em ouro e ativos do setor, servindo de proteção contra eventuais desvalorizações das obrigações do Tesouro dos EUA ou cortes nas taxas.
Sobrecolateralização: Ao acumular ouro e Bitcoin, a Tether reforça o rácio de cobertura de reservas, melhora a segurança do mercado de stablecoins e valoriza a marca, criando condições para novas emissões.
Com esta estratégia integrada, a Tether deixou de ser apenas uma empresa cripto e assume características de “banca sombra”, evoluindo para um banco central não soberano que detém mais obrigações do Tesouro dos EUA e ouro do que muitos Estados.
Este ciclo tornou a Tether um dos maiores geradores de lucros à escala global. A empresa expande agora para áreas como IA, educação, energia, agricultura e outros setores, alargando o seu impacto comercial. Mais importante, à medida que o setor das stablecoins cresce, o “poder de senhoriagem” da Tether proporcionará influência transversal a mais setores e regiões.
Apesar desta imagem de perfeição, novos desafios estão a surgir. A lógica “perfeita” da Tether enfrenta agora três ameaças centrais: regulação, volatilidade dos mercados e concorrência emergente. Qualquer uma destas pode comprometer o objetivo do “banco central sem fronteiras”.
Embora as reservas de ouro tenham permitido lucros elevados à Tether, constituem também o seu maior risco de conformidade. Em julho de 2025, os EUA aprovaram a GENIUS Act, exigindo que emissores de stablecoins ativos no país tenham reservas 100% garantidas por “ativos líquidos de alta qualidade”: numerário em dólares norte-americanos ou obrigações do Tesouro dos EUA de curto prazo.
Esta medida expõe a vulnerabilidade da Tether. Segundo o relatório do terceiro trimestre, a Tether possui reservas totais de 181,2 mil milhões de dólares contra 174,4 mil milhões de dólares em USDT emitidas. Destes, 12,9 mil milhões de dólares em ouro, 9,9 mil milhões de dólares em Bitcoin e outros investimentos e empréstimos são considerados “ativos não conformes” pelos critérios da GENIUS Act.
A análise da J.P. Morgan para 2025 indica que a Tether poderá ser obrigada a alienar todos os “ativos não conformes” — incluindo Bitcoin e metais preciosos — para operar legalmente nos EUA.
Este cenário já se verificou na Europa. Por incumprimento das regras MiCA da UE, quase todas as grandes exchanges — incluindo Coinbase e Crypto.com — removeram a USDT do Espaço Económico Europeu (EEE) entre o final de 2024 e março de 2025.
Com o reforço da aplicação da GENIUS Act nos próximos 18 meses, todas as exchanges reguladas dos EUA (como Coinbase e Kraken) deverão seguir o mesmo caminho. Apesar de a Tether afirmar não servir clientes nos EUA, uma proibição coordenada por parte das exchanges norte-americanas afetaria significativamente a liquidez global, forçando na prática a saída do maior mercado regulado mundial.
As decisões da Tether evidenciam a gravidade deste risco. Em setembro de 2025, a Tether fundou a Tether America e nomeou Bo Hines, antigo conselheiro da Casa Branca, como CEO (ver: Estrela em ascensão das criptomoedas aos 29 anos: Bo Hines, da Casa Branca à liderança da stablecoin da Tether nos EUA). A empresa lançará em dezembro uma nova stablecoin totalmente conforme, denominada USAT, garantida apenas por obrigações do Tesouro dos EUA e destinada especificamente ao mercado dos Estados Unidos. Esta estratégia parece criar um “firewall”, sacrificando o futuro da USDT nos EUA para proteger a abordagem global de reservas em ouro e Bitcoin. No entanto, a USAT representa sobretudo uma cobertura estratégica, não uma mudança de paradigma.
Como exposto, a rentabilidade da Tether depende de duas áreas principais: rendimentos das obrigações do Tesouro dos EUA e, mais relevante, valorização do ouro e do Bitcoin. Os resultados excecionais de 2025 foram motivados pela forte valorização destes ativos.
Este modelo de lucros acarreta riscos relevantes. Se as condições de mercado se inverterem em 2026, o crescimento dos lucros da Tether poderá abrandar ou até tornar-se negativo.
As principais instituições financeiras prevêem que a Reserva Federal venha a cortar taxas em 2026. Uma descida de 25 pontos base poderá reduzir em 32,5 milhões de dólares o rendimento anual da Tether.
Paralelamente, ouro e Bitcoin beneficiaram de um “bull market” eufórico em 2025, mantendo-se o otimismo para 2026 devido às expectativas de cortes de taxas. Contudo, os mercados mantêm-se imprevisíveis. Se ouro e Bitcoin entrarem num ciclo de “bear market” (não obrigatoriamente em simultâneo — que é o fundamento da gestão de risco da Tether), os ganhos poderão reduzir-se drasticamente, anulando lucros num novo ciclo.
Adicionalmente, se o mercado cripto se tornar bearish, o crescimento da emissão de stablecoins poderá estagnar ou mesmo recuar, impactando diretamente os resultados da Tether.
A intensificação da regulação está a redefinir o mercado das stablecoins. A GENIUS Act nos EUA e as normas MiCA da UE criam espaço para stablecoins integralmente conformes.
O principal beneficiário é o USDC da Circle. Enquanto referência em conformidade, o USDC é privilegiado pelos reguladores. O relatório do terceiro trimestre de 2025 da Circle indica que a circulação do USDC atingiu 73,7 mil milhões de dólares, um crescimento anual de 108%.
Em comparação, a Tether continua líder, mas perde dinamismo. Os dados de setembro de 2025 apontam para uma oferta de USDT de 172 mil milhões de dólares, com o crescimento a ficar atrás do USDC. De acordo com o Relatório Global de Desenvolvimento da Indústria de Stablecoins 2025 da PANews, o USDC poderá ultrapassar a USDT até 2030 caso a tendência se mantenha. Em síntese, a “estratégia do ouro” da Tether é simultaneamente o seu maior trunfo competitivo e uma fonte de vulnerabilidade. Objectivamente, o modelo de cobertura de risco da Tether permanece o mais sofisticado do setor cripto. Analistas de referência como J.P. Morgan e Goldman Sachs consideram que o ciclo de cortes da Fed em 2026 pode impulsionar novos máximos no ouro e Bitcoin, e não um “bear market”. Se tal acontecer, a “estratégia do ouro” da Tether poderá levá-la a um novo patamar.





